À procura de paz

Cerca de quatro mil quilómetros separam Portugal de Atenas. Os mesmos que Pedro Amaro Santos, antigo estudante de Património Histórico e Turismo Cultural da UMinho, percorreu, em Fevereiro de 2017. No passaporte levava uma data de regresso daí a dois meses. Passaram-se quatro, seis, doze e só voltou um ano e meio depois. Deu o melhor de si para quebrar “muros” e preconceitos. Na mala levou amor e trouxe a certeza que não há barreira linguística que nos impeça de amar.
É com ele que hoje, Dia Mundial da Rádio e em que se fala de “Diálogo, Tolerâcia e Paz”, viajamos até ao campo de refugiados de Karatepe, em Atenas. O lugar onde Pedro ajudou e foi ajudado, porque, afinal, não será esse o caminho para…a paz?
A viagem começa agora, o caminho é longo, mas todos esperamos que valha a pena.
“O campo de Moria é o inferno. É pior do que qualquer pessoa possa imaginar”. Existem muitos e diferentes campos de refugiados, uns mais “simpáticos” do que os outros e até para se ser refugiado é precisa alguma sorte.
Moria acolheu o dobro das pessoas para a capacidade que tinha. Pessoas de diferentes “grupos e nacionalidades”. “Não tem água quente, nem casas de banho para toda a gente. As pessoas passam os dias em filas para terem uma refeição. Passam uma manhã numa fila, tomam o pequeno-almoço e já estão na fila seguinte”, descreve Pedro. O simples acto de comer em paz acaba, muitas vezes, por originar “batalhas campais entre nacionalidades”.
“Já aconteceram mega incêndios que destruíram partes do campo. Os Médicos Sem Fronteiras relatam o número de violações semanais que acontecem a crianças dentro do campo”. A realidade é tão dramática que muitas crianças com menos de 10 anos se tentam suicidar, porque não aguentam a violência que ali se vive. “As pessoas não podem sair das tendas, principalmente mulheres e crianças”. Vivem de mãos dadas com o medo, numa realidade que, como diz Pedro, se compara ao inferno na Terra.
“Isto choca e acontece porque não criamos soluções para o que se passa lá”, aponta o jovem natural da Trofa.
A rota da nossa viagem segue agora até ao campo de Karatepe, também em Lesbos, onde Pedro permaneceu a maior parte do tempo.
O espaço pertence ao Município e “é muito virado para as famílias”. Não tem o conforto de um lar, mas por lá permanece a entreajuda que se vive em família.
“Existe uma protecção muito grande do campo. Estamos a falar de um campo que não tem tendas mas pré-fabricados, um espaço relativamente controlado mas que tem água fria o ano todo, onde as pessoas não podem cozinhar a própria refeição,que, parecendo que não, é um atentado à dignidade”. Na verdade, na maior parte do tempo não paramos para pensar que o simples acto de irmos ao armário e escolhermos o que queremos comer é, por si só, um gesto de liberdade. Uma liberdade que muitos não sabem o que é.
Em Karatepe, as crianças não têm acesso à escola. E a sorte de que falávamos há pouco começa no país de origem.
Segundo Pedro Amaro Santos, “há muitas diferenças de acesso a oportunidades, leis e processos burocráticos, o que cria uma injustiça tremenda”. “Fugir de uma guerra ou da morte por fome é desproporcional em termos legais e é assustador”, assevera o jovem, que nos fala de “demasiados sítios que são descritos como sendo o pior momento da vida destas pessoas, mesmo comparado com a guerra”.
Nestes locais, que parecem localizados num mundo diferente do nosso, faltam “medicamentos, comida e apoio”. Mas também falta amor. “O amor é muito importante. Eu acho que o amor faz toda a diferença”.
Falta de tudo um pouco, a quem saiu sem nada de uma terra que já pouco tinha para dar. E chegam de vários pontos do mundo, com motivos diferentes, mas sempre “assustadores”.
Pedro lidou com migrantes do “Paquistão que fogem por problemas relacionados com os talibã e perseguição de minorias religiosas. Afeganistão, o país daquela região que está em guerra há mais anos, do Iraque e da Síria, onde todos sabemos o que se passa, do Curdistão, de países africanos como Camarões ou Congo, que têm jornadas três vezes maiores que ninguém compreende como é possivel percorrer. Do Irão, que continua a perseguir mulheres, orientações sexuais diferentes e cristãos. E da Turquia, o país com maior número de jornalistas presos no mundo”.
Ser preso por ter rap no telemóvel? Acontece no século XXI.
A família de Maruff foi uma das muitas que marcaram a aventura de Pedro. Em circunstâncias normais, esta família viveria de forma tranquila e feliz no Afeganistão. Mas Maruff teve a infelicidade de nascer “na região errada do Afeganistão e era perseguido pelos talibãs e grupos terroristas”. Maruff resistiu e, desde então, vivia com uma sentença de morte declarada: “ou fugia ou morria”.
“Por cá, vamos a manifestações e dizemos o que queremos, mas não é assim em todo o lado”, lembra o jovem português. “Na Síria, muitas pessoas foram presas por terem rap no telemóvel. Conheci pessoas que era ridículo e, às vezes, assustador os motivos pelos quais tinham que deixar o país”.
“Atravessam montanhas, durante dias, com os filhos às costas”
Os que chegam do Afeganistão “percorrem uma viagem tremenda, porque têm que atravessar montanhas, durante dias, com os filhos pequenos às costas. É sempre no limite do que é seguro e é intrigante como é que todos esses pais conseguem manter nos filhos um sentimento de esperança e de que isto é só um jogo”.
“Na montanha, o meu pai dizia-me que era um jogo, que tínhamos que correr até ali à frente, sem olhar para trás”, contavam os mais pequenos ao português.
“Quando atravessávamos no barco o meu pai dizia que podia ter tubarões e que, por isso, o barco abanava, mas se eu não olhasse para baixo e olhasse para a frente ia correr tudo bem”. “Isto é muito corajoso e bonito ao mesmo tempo”, refere.
Para trás ficavam realidades que os mais pequenos não deviam ver, pelo impacto brutal que pode ter uma arma ou uma bomba na vida de uma criança. O objectivo é chegar, com a família completa, a um porto seguro.
Infelizmente, conta Pedro Amaro Santos, “as crianças conseguem viver iludidas com algumas ideias durante algum tempo, mas muito rapidamente se apercebem do que se está a passar e apercebem-se, por exemplo, que o passaporte deles vale menos do que o meu”.
Quando Pedro regressou a Portugal, em meados de 2018, as questões dos mais pequenos levantaram-se: “Porque é que tu podes ir para casa e eu não posso ir para casa? É por eu ser do Paquistao?”
“Isto marca muito profundamente as crianças, mais do que o que podemos imaginar”, acrescenta o voluntário.
Para Pedro, “havia possibilidade de termos dado um futuro melhor” a estas crianças, que, mesmo longe do país delas e com um idioma que não era o seu, “estavam integradas na escola” grega e eram “os melhores alunos da turma”. A força do querer leva estes jovens a “falarem um inglês e um grego quase perfeito”.
E é precisamente a propósito de um futuro melhor, que “o sonho da maior parte das pessoas está muito relacionado com o futuro dos filhos”. “Um futuro de paz, de oportunidades e que possam estudar. Pagam um preço muito caro por isso”, afirma o voluntário.
Os olhos de quem vive naquele campo, conta Pedro, mostram na maioria dos casos, “alívio”.
Gratidão e confiança são aspectos realçados por estes migrantes em relação ao trabalhos dos voluntários, que chegam de várias partes do mundo com vontade de ajudar.
“Os voluntários normalmente trabalham sete dias por semana, 48 horas por dia”, explica o jovem.
O dia de Pedro no campo de Karatepe podia começar durante a madrugada “com a necessidade de ir levar alguém ao hospital”. Também oferecem ajuda para aspectos que parecem tão simples como “tratar de documentos”, mas onde o idioma pode ser um entrave, sobretudo para os refugiados mais velhos.
A primeira missão de Pedro passava por, logo pela manhã, abrir a loja social, onde as pessoas encontravam as roupas que precisavam. Os voluntários dedicam-se também aos mais pequenos, numa sala de desenvolvimento educacional. À tarde, há o “tea time”, um momento para beber chá e socializar, onde os refugiados têm acesso à internet, por exemplo. Este é, de resto, um dos momentos preferidos dos migrantes, chegando a contar-se “300 pessoas por dia”. Para os voluntários, esta é a oportunidade de “despistar problemas e dar acompanhamento”.
Com os adolescentes são desenvolvidos workshops de vídeo e fotografia e com os mais pequenos a aposta é na arte. Diz o português que “com dois ou três marcadores se pode fazer muita coisa”. O grupo ajuda ainda o centro de apoio escolar. A noite é preenchida com “actividades ligadas ao cinema”. “As pessoas vivem momentos difíceis, estão em permanente estado de tensão, e a única coisa que precisam é que nos sentemos e conversemos com eles”, comenta Pedro.
O que persiste nestes lugares, revela o jovem, “é o permanente estado de espera”. “Dizemos que a nossa missão é cuidar a espera. As pessoas estão num momento de pura espera que nem sequer tem data final”, apontou.
Não saber “quando e qual vai ser o futuro” deixa nestas pessoas “uma revolta muito grande”.
Na amizade não cabem diferenças
Durante o ano e meio em que esteve no campo, Pedro Amaro Santos fez muitos amigos. Há um menino que, com apenas 7 anos, marcou a sua vida.
O pequeno refugiado paquistanês, diz Pedro, “é muito sábio nisto da tolerância e das diferenças”. “O Fahad sente na pele, logo pela escola, as diferenças que os adultos transmitem às crianças e que afecta a relação entre elas”. Fahad sofre com essas diferenças, que são “o reflexo do que há à volta dele”.
“Tínhamos sido convidados para a inauguração de um restaurante na nossa rua. Eu fui, tirei uma fotografia, que enviei para o grupo de whatsapp do campo e quando cheguei, o Fahad ouviu -me falar, saiu do quarto e olhou-me com uns olhos que nunca vou esquecer. Muito chateado disse-me: “Não falo contigo. Não sou mais teu amigo, porque tu entraste no sítio em que a minha família foi proibida de entrar por sermos do Paquistão. Isto é muito forte numa criança”, desabafa Pedro Amaro Santos, que nunca mais esqueceu que os seus “actos podem ter consequências e tocam a vida” de pessoas como o Fahad.
Ser voluntário é, “mais do que salvar, ser salvo”
Depois de uma viagem tão longa, voltamos ao ponto de partida para que percebamos como tudo começou.
Pedro Amaro Santos esteve envolvido em vários projectos de voluntariado. Passou por um projecto de voluntariado europeu de comunicação de direitos humanos, depois foi-se envolvendo em projectos pontuais, onde ajudou num armazém de roupa, envolveu-se num movimento pela paz na Síria, esteve a trabalhar num hotel abandonado que foi ocupado por migrantes, em Atenas, com 300 pessoas e sem financiamento. Trabalhou para a Plataforma de Apoio aos Refugiados, em parceria com a JRS Grécia.
Pedro chega, primeiro a Salónica e depois a Atenas, impulsionado apenas pelo poder da palavra. Numa viagem a Auchwitz alguém disse “Eu peço desculpa, porque a minha geração viu isto a acontecer e não fez nada. Fez de conta que não sabia”. Neste momento, Pedro sentiu que estava na hora de agir. Tinha chegado o momento de, além das imagens que lhe chegavam pela televisão, fazer a mala e partir. Partiu duas semanas depois.
“Fazia sentido partir para a Grécia. Isto não é uma crise de refugiados é uma crise de sistema europeu e de sistema social. Enquanto sociedade, tornou-se aceitável que as pessoas vivam no desespero”, contesta. Tinha chegado a hora de embarcar numa aventura que, afinal, duraria um ano e meio. Um tempo que não foi suficiente para mudar a dura realidade, mas serviu, pelo menos, para ajudar a tornar Karatepe, um lugar um bocadinho melhor.
E, antes de terminarmos, importa, afinal, percebermos o que é ser voluntário?
Pedro responde:
“Ser voluntário é ser disponível. É fazer alguma coisa por alguém, sem nada em troca. É, em vez de salvar, ser salvo”.
“Salvaram-me muito mais a mim”. Do outro lado, “ser refugiado é confiar”.
O que dizem os números: SOS bem ou mal sucedido?
Entre 2015 e 2018 chegaram a Portugal 1674 refugiados. No mundo há mais de 68 milhões de pessoas à espera de uma oportunidade para recomeçar.
Fogem como podem, por terra e por mar. E é no Mediterrâneo que para muitos a viagem acaba a meio. Só em 2018, morreram na principal porta de entrada para a Europa 2270 pessoas, o que equivale a seis mortes por dia.
Pedro Amaro Santos considera que “há claramente um processo falhado” na União Europeia, quando analisamos o número de pessoas “que estão a chegar, todos os dias, principalmente, à Grécia e à Itália, e o número de pessoas que foram acolhidas.
“Há uma grande falha na vontade política e social”, comentou o jovem.
Para Pedro, “não há tolerância numa perspectiva europeia”, quando “países como a Alemanha e a Suécia fizeram um esforço maior do que os outros e estão socialmente a sofrer algumas consequências disso, e, depois, países como a Polónia e a República Checa, que não acolheram praticamente ninguém, têm um discurso anti-pessoas”.
Quanto a Portugal, há, para o jovem, aspectos positivos e negativos.
“Portugal é favorável a nível político, mas não a nível social”, apontou.
“Somos um país com muito racismo e muito pouco tolerante. Tivemos aquém do que poderíamos fazer em termos de números, mas também compreendo as dificuldades que isso tem, porque depois vemos o número de pessoas que foi embora e isto faz-me pensar que não estamos preparados e que temos um longo caminho a fazer em termos de sistemas estruturais”, explicou.
No entanto, Pedro considera que “Portugal fez muito e é dado como referência”. “Se há coisa que me deixava feliz era as pessoas dizerem que ouviam falar muito bem de Portugal”, acrescentou.
Um dos episódios que justifica essa boa impressão tem como protagonista Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente da República visitou o campo onde Pedro era voluntário. Esse dia, adianta, “foi dos dias mais felizes da vida” daquelas pessoas, porque, “para muitas o Presidente da República é um ditador, que os oprime, que causou uma guerra”. O nosso não.
“Na Europa falha todos os dias o diálogo, a tolerância e a vontade de fazer paz. Em primeiro lugar a vontade de fazer paz, porque grande parte das guerras que causam os movimentos migratórios são guerras causadas pela Europa. Depois dos ataques em Paris, a França largou uma quantidade massiva de mísseis sobre a Síria. Isto tem consequências na vida das pessoas”, alertou. “Falhamos muito na tolerância, porque estamos constantemente a fazer acusações que não criam pontes de diálogo”, acrescentou. E esta é uma realidade que “se passa em muitos mais sítios da Europa”, finalizou.
São vidas suspensas no tempo. São homens e mulheres que fogem de uma guerra que não é sua. Vindos do Paquistão, Síria, Afeganistão, Iraque, Irão, Camarões ou do Congo. Chegam à Europa em nome da sobrevivência, em condições desumanas para deixar a vida em stand by por tempo inderterminado. Chamam-lhes refugiados, porque procuram um novo abrigo, onde o barulho das bombas seja substituído pelo sentimento de paz.
Pedro é apenas um dos muitos voluntários onde reina a esperança de um mundo melhor. Pessoas, de diferentes nacionalidades, a quem não levantam muros nem roubam passaportes. Seres humanos que, por terem tido a sorte de nascerem livres, escolhem todos os dias ajudar quem fica prisioneiro da própria vida. Em duas semanas, Pedro fez a mala e partiu para Atenas. É a prova de que, quando muitos países fecham as portas, ainda há pessoas que abrem os braços.
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