Especialistas arrasam caderno de encargos da Confiança

[Em Actualização] A Junta de Freguesia de S. Victor quis ontem perceber se a venda a privados irá acautelar o património industrial da antiga Fábrica Confiança e a resposta dos especialistas convidados foi unânime: o caderno de encargos para a alienação é caricato, com pontos estranhos, sem um estudo aprofundado, que permite tudo e que diz muito pouco sobre o património daquele imóvel.
O Professor José Lopes Cordeiro, especialista na Arqueologia Industrial, José António Lameiras, urbanista e Miguel Malheiro, arquitecto e membro da Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Protecção do Património (APRUPP) foram os convidados da sessão. Ao longo de mais de duas horas, o público ouviu atentamente as análises dos especialistas que avisam que toda a situação indicia que o município está a preparar terreno para um mero negócio imobiliário que pode nem resultar numa requalificação imediata depois da venda.
Caderno de encargos “tem coisas caricatas”, diz especialista na Arqueologia Industrial
Para o docente da UMinho, José Lopes Cordeiro, o edifício encontra-se “ameaçado”, algo que “é o prato forte da casa no poder autárquico” em Portugal. Recordando que “nunca houve uma estratégia clara para o que fazer com o património da cidade, o especialista alertou que “quem tem responsabilidades políticas tem obrigação de adquirir formação e salvaguardar os interesses do município e da população”.
Na opinião do docente, o município “está a colocar em causa o património que representa a Fábrica Confiança, uma fábrica conhecida nacionalmente que fez mais pela imagem de Braga do que todos os executivos camarários desde o 25 de Abril”, sublinhou, acrescentando que a componente de património imaterial deve ser motivo de orgulho, salvaguarda e projecção. “Não vejo nenhum argumento que possa justificar a alienação da Fábrica”, disse. Numa análise ao que se passou desde 2012, o docente referiu ter poucas dúvidas que se perfile “um negócio”. Sobre o caderno de encargos, o docente da UMinho foi até irónico: “é apresentado como algo que nunca foi feito e cheio de rigor, mas tem coisas caricatas. A câmara está preocupada em integrar a memória da antiga chaminé. Não sei o que será a memória de uma chaminé.Isto é talvez a má consciência”.
“Caderno de Encargos não contém prazo de execução da obra”, avisa José António Lameiras
Reconhecendo que a “CMB está no seu direito”, José António Lameiras estranha que tenha sido adquirida em 2011 para salvaguarda do edifício e para a instalação de um equipamento e que “passado sete anos vá a hasta pública por um valor ligeiramente superior”.
Sobre o caderno de encargos avisa que “há um erro logo a começar: não quantifica a percentagem dos usos”. Ainda assim, admite que no caderno elaborado, “o mais surpreendente está na avaliação. É feita de acordo com o quadro de expropriações, mas é definido um índice médio de utilização de 3,5, que é brutal”. “Os índices médios dos PDM’s são de 1,8 e já é enorme”, aponta. “Dá a impressão que está aqui porque é necessário para justificar determinada área de construção, de determinado valor base para os 3,8 milhões de preço base da hasta pública”, acrescenta.
José António Lameiras sustenta que com um caderno de encargos assim, naquele edifício poder nascer, por exemplo, uma clínica privada, isto porque sobre estudo de tráfego, “ou houve excesso de zelo, ou as condições de tráfego que se espera que possa gerar seja intenso e permanente”, sustenta.
Sobre os 500 m2 para o museu da memória da Fábrica, nota que o processo “está a nascer torto” e “devia existir um estudo mais aprofundado do edifício”.
Ainda assim, um dos principais alertas vai para a ausência, no caderno de encargos, do tempo de execução da obra. “São dados seis meses para apresentação do processo de licenciamento e não é dado prazo nenhum para a construção. Isto pode significar um edifício parado durante anos. A CMB devia referir o tempo para execução da obra”, defende.
“O caderno de encargos não está a cuidar daquele património” – Miguel Malheiro, Arquitecto
Para Miguel Malheiro, o caderno de encargos elaborado pela equipa do vereador Miguel Bandeira “não está a cuidar do património da antiga fábrica Confiança”, isto porque grande parte dos parágrafos diz respeito ao trânsito, mas sobre o património “diz muito pouco”.
O especialista considera que o caderno de encargos “devia ser salvaguardado de outra forma” e que “quem adquirir o imóvel tem apenas de cuidar das fachadas”, algo “altamente inconcebível”. Sobre o espólio “é caricato que não se descreva que tipo de espólio é, e quem adquirir aquilo não faz a mínima onde se vai meter”, aponta.
O especialista reitera que o ideal seria “haver estudos preliminares que caraterizassem o edifício”, além de que “não é conhecida a avaliação estrutural no presente”. Estudos que “deviam estar plasmados neste caderno. Sem isso, o caderno não diz nada e tudo é possível ser feito naquele edifício”.
Este foi o segundo debate organizado pela Junta de Freguesia de S. Victor que está contra a venda do imóvel por parte da Câmara Municipal de Braga. No final da discussão, e em declarações à RUM, Ricardo Silva reconheceu estar agora “mais ilucidado” com o conjunto de opiniões que ouviu. O presidente da Junta de Freguesia promete “pegar nos contributos e vertê-los num documento que possa ajudar a blindar a memória da Confiança”. O autarca sensibilizou ainda os bracarenses a deslocarem-se à Assembleia Municipal da próxima quinta-feira onde está prevista a votação da alienação daquele imóvel para manifestarem a sua discordância com as pretensões do município de Braga, na tentativa de travar aquela votação.
Áudio:
José António Lameiras, Miguel Malheiro e José Lopes Cordeiro
