Uma vida feita de Ricon. Na rua, como vão viver 800 pessoas?

Depois de um fim-de-semana de descanso esperava-se uma segunda-feira normal como tantas outras de trabalho na empresa Ricon. E assim foi. Às 8h00, cerca de 800 mulheres e homens apresentaram-se ao serviço que só devia terminar às 17h10. Durante a manhã o telemóvel de dezenas de funcionárias tocou, todos mais ou menos pela mesma hora. “Eu até pensei que seria o meu filho ou o meu homem que às vezes quisessem alguma coisa”. E era. No caso de Amélia foi o marido a dar-lhe a notícia de que uma carta de despedimento, datada de 26 de Janeiro, tinha chegado pelo correio. “Aí parou tudo. Depois até veio o nosso responsável dizer para pararmos porque não havia condições”. Parou a máquina a meio de um processo, a meio de uma encomenda que tem que ser feita. Toda a vida pensou em trabalho e até nas horas más equacionou a hipótese de continuar a produzir “para não deixar ficar mal a empresa”. Essa encomenda, agora que a fábrica fechou, nunca deverá ser entregue ao cliente. “Eu não percebo. Nós temos trabalho. Não percebo mesmo”.
Amélia é a voz da indignação de muitas mulheres que não sabem o que vão fazer num futuro muito próximo. Para amanhã já têm programa: vão, por turnos, noite e dia, continuar na empresa pelo menos até quarta-feira. “Metade das coisas não está no inventário. O armazém está cheio de tecidos e no inventário não tem um único rolo. Vamos ficar aqui para que não saia nada”.
Nunca pensaram que seria possível a empresa chegar ao fim. Até mesmo depois da nota de insolvência entregue ao tribunal em Novembro. “A má gestão, os aviões, os Porsches e as pessoas que entraram para ganhar muito dinheiro” estão no topo das culpas pelo encerrrar de portas. Francisco Vieira, presidente do Sindicato dos trabalhadores da Indústria Têxtil e Minho, “não percebe como esta tragédia social aconteceu”, mas tem presente que é um caso “muito suspeito”, “duvidoso” e “estranho”. Esteve durante a tarde a tentar responder às dezenas de dúvidas dos trabalhadores. Junto à entrada, a falar para centenas de funcionários, revelava os principais credores da Ricon onde no meio de cinco bancos está a Delcon –empresa do grupo-. “Você acha isto normal?”. Os investimentos mal feitos pelo administrador serão a principal causa para uma dívida de cerca de 32 milhões de euros. “Até poderá vir algum investidor que pegue na empresa, mas para isso vão esperar que a fábrica “bata no fundo” e depois começam do zero”.
Lucro, horas extras e mais lucro. Maria Silva diz que vive assim há mais de 30 anos. Foi uma vida de trabalho e dedicação a uma empresa que lhe deu tudo, mas que também lhe tirou “muita coisa”. “Sempre trabalhei aqui”. De salários em atraso não se pode queixar porque isso “nunca aconteceu”. Lamenta apenas meio subsidio de férias que está por receber e as “horas por gozar”, mas “o pior mal fosse esse”. Vive perto daqui, “quase que dá para vir a pé”. É de Ribeirão, o que lhe facilitava o transporte. “Algumas das minhas colegas são de Lousado, Fradelos, Trofa. Somos quase todas desta zona”, revela. “Agora vamos para casa. Seja o que Deus quiser”.
Sobre a possibilidade levantada pelo presidente do município, Paulo Cunha de estas mulheres poderem aproveitar o Centro Qualifica –em tempos denominado de Novas Oportunidades-, Maria diz não gostar muito da ideia. “Você já viu eu agora voltar à escola? Não quero. Sempre trabalhei na minha vida”. A Câmara de Vila Nova de Famalicão tem a funcionar uma linha de apoio destinada aos trabalhadores da têxtil Ricon, que receberam cartas a comunicar a cessação dos seus contratos de trabalho devido à possível liquidação da empresa.
Áudio:
Funcionárias apontam as principais causas da insolvência da Ricon
